CABRELA NO TEMPO DE D. MANUEL I

HISTÓRIA DE UM FORAL

Um texto da autoria de:

Sónia Bombico (CIDEHUS-U. Évora)
Leonor Dias Garcia (CIDEHUS-U. Évora)

Resumo da comunicação de dia 27 de Fevereiro de 2016, realizada no âmbito das comemorações dos 500 anos do Foral Manuelino de Cabrela.

A 10 de Fevereiro de 1516, D. Manuel I concedeu Carta de Foral à vila de Cabrela. Passam precisamente 500 anos e cabemos celebrar a data. Durante o ano de 2016, a Junta de Freguesia de Cabrela procederá a um conjunto de acções com vista à comemoração do 5º centenário.

Mas o que é afinal um Foral e que importância teve a sua atribuição? São questões relevantes que tornam esta ocasião perfeita para conhecermos melhor a nossa História.

Um Foral é um documento de direito público local concedido pelo Rei, através do qual se estabeleciam e concediam direitos, regalias e privilégios, regulando-se o modo de administração local, especialmente ao nível dos tributos, taxas e obrigações.

O Foral de Cabrela é semelhante aos mais de 500 forais concedidos por D. Manuel I, entre 1499 e 1520. O monarca empenhou-se na concessão dos Forais Novos, com vista a substituir os Forais Velhos, num movimento que ficou conhecido como Reforma Manuelina. Há muito que o povo reclamava nas Cortes a reforma dos forais medievais, muitos dos quais obsoletos, escritos em latim e distanciados da realidade da época. Os senhores locais administravam a seu bel-prazer os territórios, abusando regularmente do poder. Mais do que dar resposta aos pedidos do povo, o Rei quis criar uma ordem jurídica coerente e uniforme para todo o reino e instalar um sistema fiscal eficaz, de recolha de rendimentos para a coroa.

Em 1516, Portugal vivia um momento de expansão extraordinário com a descoberta, em 1498, do caminho marítimo para a Índia e a chegada ao Brasil, em 1500. O monarca esforçava-se por consolidar um Império que havia extravasado, há muito, as fonteiras do pequeno pedaço de terra que havíamos reconquistado aos mouros.

A conquista dos territórios, imediatamente a sul do Tejo, foi repleta de avanços e recuos e a região de Cabrela terá sido palco de incursões cristãs e muçulmanas. O Castelo de Palmela foi tomado aos mouros em 1147 e novamente em 1165, data em que é doado à Ordem de Santiago, em reconhecimento pelo empenho dos espatários na guerra da Reconquista.

Foral de Cabrela

Em 1186, D. Sancho I oficializa a doação dos castelos de Alcácer do Sal e Palmela à Ordem de Santiago, mas estes voltariam a ser tomados pelos mouros (1190-1191) e recuperados definitivamente pelos cristãos, provavelmente já nos inícios do séc. XIII (c.1205).

Cabrela terá sido integrada no Mestrado da Ordem de Santiago, algures entre 1165 e 1220, tornando-se uma Comenda da dita ordem e ficando sob a jurisdição do Real Convento de Palmela, sendo os seus administradores os abades do mesmo Convento.

A transcrição do Foral de 1516, para além da rica informação relativa à administração local e fiscal da vila nos idos de quinhentos, permitiu recolher duas informações importantes que nos remetem para a longínqua época da Reconquista Cristã.

 

A primeira diz respeito à existência de um foral anterior, concedido por D. Afonso Henriques. Não tendo o antigo foral chegado aos nossos dias, e não havendo certezas de se tratar de um foral dado exclusivamente a Cabrela, pensamos que a dita referência se poderá associar ou ao Foral dos Mouros Forros ou ao Foral de Palmela de 1185; se tivermos em conta que Cabrela esteve sempre directamente associada a Palmela e por esse motivo, provavelmente, automaticamente abrangida pelas cartas de foral dadas a Palmela. O Foral dos Mouros Forros é uma fonte sui generis; dado a Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer do Sal em 1170, continha disposições legais que definiam o estatuto da comunidade de muçulmanos no seio da sociedade cristã, garantindo-lhes a liberdade de religião e a conservação das suas propriedades, mediante pagamento dos impostos e cumprimento de certas obrigações.

A segunda nota importante diz respeito à doação da vila à Ordem de Santiago em data anterior a 1224, informação que é confirmada pela Inquirição do reinado de D. Afonso II, datável de 1220, documento no qual a comenda de Cabrela surge já referida como pertencente à Ordem. Este é, de resto, o documento mais antigo conhecido com uma referência directa a Cabrela. É-nos, por ora, impossível aferir a data concreta em que Cabrela terá sido incluída nas possessões da Ordem de Santiago.
Voltando a 1516…O Foral Manuelino de Cabrela, após consenso de todas as partes – Conselho, Senhorio (Ordem de Santiago) e Coroa – terá sido publicado através de uma leitura pública perante o povo e as autoridades locais.

O exemplar que chegou aos dias de hoje, conservado na Torre do Tombo em Lisboa, foi redigido pelo escrivão e cavaleiro da casa real Fernão de Pina, encarregado pelo rei de redigir as várias centenas de Forais Novos. Uma tarefa gigantesca que mobilizou um conjunto de meios humanos e materiais incomuns: escrivães, iluminadores, artífices, oficinas de encadernação, preparação de pergaminhos e tintas, etc. Trabalho árduo cujo resultado podemos, ainda, apreciar volvidos 500 anos.

Recriação da Publicação do Foral de Cabrela pela associação Velha Lamparina

Os forais manuelinos são diplomas muito estereotipados quanto ao conteúdo, apresentando uma estrutura comum e quase formal, ainda assim é possível identificar as principais actividades e bens do quotidiano cabrelense, nos inícios do século XVI.

A primeira actividade referida é a do tabelionato, seguindo-se regulamentações sobre o crime, a terra, a produção, o comércio e os escravos. De forma sucinta podemos indicar as seguintes actividades e bens:

  • Produção agrícola – vinho, vinagre, frutos frescos, frutos secos, hortaliça, cereais (linhaça, centeio, cevada, milho, painço, aveia) e azeite;
  • Gado – gado “do vento”, de criação e de carga (bovino, suíno e “miúdo”);
  • Bens alimentares – leite, ovos, sal, farinha, farelo, pão, queijadas, biscoito, mel, queijos secos, manteiga salgada e especiarias;
  • Outros bens – cal, madeira, vides, canas, carqueja, tojo, palha, vassouras, barro, lenha, cortiça, erva, cera, sebo e unto, pez, resina, breu, sabão, alcatrão, pelitaria, boticaria, tinturas, telha e tijolo;
  • Minério – carvão, prata lavrada, pedra, aço e estanho;
  • Manufacturas – por transformar (lã e linho fiados, couro) e transformadas (panos de lã, linho, seda, algodão, couro curtido, louça de barro, peças de madeira, peças de esparto, palma ou junco);
  • Comércio – portagem (regulamentação sobre a compra e venda de mercadorias de dentro para fora da vila e vice-versa).

As regulamentações incluem, também, a forma de exploração das moendas (moinhos) e dos maninhos (terremos baldios ou matos não cultivados). São, ainda, regulamentadas as contendas entre a Ordem de Santiago e a população, entre vizinhos, sobre o gado e a exploração agrícola, etc. São referidos os privilegiados (homens e mulheres do clero) e seus privilégios, nomeadamente a isenção de pagamento de portagem. Terminando o diploma com informações relativas às penas por incumprimento do foral.

O Foral de 1516 é uma peça de um puzzle histórico complexo e difícil de construir. Um conjunto de outras fontes medievais, modernas e contemporâneas aguardam, nos Arquivos Históricos, por uma leitura e interpretação atenta. Há sítios arqueológicos por escavar e muitos pergaminhos por ler. Mais quinhentos anos não serão suficientes para acabar de contar a História que nunca tem fim.